10/20/2025

Herança Digital e Sucessão de Bens Virtuais em Palmas: O Futuro do Direito Sucessório no Tocantins

Em mais de duas décadas atuando com Direito de Família e Sucessões em Palmas, tenho observado transformações profundas nas relações patrimoniais. Se antes lidávamos essencialmente com imóveis, veículos e contas bancárias, hoje nos deparamos com criptomoedas, perfis monetizados em redes sociais, carteiras digitais e ativos virtuais que representam parcelas significativas do patrimônio das famílias tocantinenses.

Amorte não encerra mais apenas vínculos físicos. Deixamos para trás um rastro digital valioso e, muitas vezes, desconhecido pelos próprios familiares. Esta realidade impõe ao Direito Sucessório desafios inéditos e urgentes, especialmente em uma capital jovem e conectada como Palmas, onde a digitalização permeia todas as esferas da vida.

O Vácuo Legislativo Brasileiro

O Código Civil de 2002, principal diploma legal que regula sucessões no Brasil, foi elaborado em época anterior à popularização das redes sociais, criptomoedas e da economia digital. Consequentemente, não contempla disposições específicas sobre herança digital, gerando insegurança jurídica tanto para famílias quanto para operadores do direito em todo o Tocantins.

A Lei Geral de Proteção de Dados, marco regulatório da privacidade no Brasil, também não aborda explicitamente o tratamento de dados pessoais post mortem. Conforme Nota Técnica 3/2023 da ANPD, a legislação brasileira não se aplica aos dados de pessoas falecidas, delegando essa regulamentação ao Direito Sucessório e aos direitos da personalidade previstos no Código Civil.

Este cenário cria verdadeiros impasses. De um lado, herdeiros que desconhecem a existência de ativos digitais valiosos. De outro, plataformas digitais que, sem orientação legislativa clara, aplicam políticas próprias que nem sempre dialogam com os interesses legítimos das famílias palmenses.

A Reforma do Código Civil: Perspectivas para 2025

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 4/2025, que propõe extensa reforma do Código Civil. Coordenada pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, a proposta introduz pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro o conceito de patrimônio digital, definido como ativos intangíveis e imateriais com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural.

O projeto especifica que integram o patrimônio digital:

Criptoativos e moedas eletrônicas
Programas de pontuação e recompensas
Perfis em redes sociais e canais monetizados
Direitos autorais digitais
Contas em plataformas de streaming
Arquivos armazenados em nuvem
Contratos eletrônicos e assinaturas digitais
Domínios de internet

Complementarmente, em agosto de 2025 foi protocolado na Câmara dos Deputados o PL 4066/2025, de autoria do Deputado Júlio César Ribeiro, que propõe alterações específicas no Livro V do Código Civil para regulamentar detalhadamente a sucessão de bens digitais, incluindo a criação da figura do inventariante digital.

Embora ainda dependam de tramitação legislativa, estas propostas sinalizam reconhecimento institucional da urgência em atualizar nossa legislação sucessória para a realidade digital.

Inovação Jurisprudencial: O Inventariante Digital

Em setembro de 2025, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão relatada pela Ministra Nancy Andrighi, criou jurisprudencialmente a figura do inventariante digital. Esta decisão histórica permite que herdeiros acessem bens digitais armazenados em dispositivos eletrônicos de pessoas falecidas para composição do inventário, mesmo sem posse prévia das senhas.

O inventariante digital funciona como perito auxiliar, nomeado judicialmente ou indicado pelos herdeiros, com missão específica de acessar aparelhos eletrônicos, identificar ativos digitais transmissíveis e apresentar relatório circunstanciado ao juízo do inventário. Esta figura distingue bens patrimoniais, que devem compor o espólio, de conteúdos existenciais, protegidos pelos direitos da personalidade do falecido.

Esta inovação representa avanço significativo na proteção dos direitos sucessórios, equilibrando acesso legítimo dos herdeiros com preservação da privacidade e dignidade do de cujus. Para as famílias de Palmas, significa instrumento concreto para recuperação de ativos digitais que, de outra forma, permaneceriam inacessíveis.

Classificação dos Bens Digitais

A doutrina e jurisprudência têm consolidado classificação essencial para compreensão da herança digital:

Bens Digitais Patrimoniais

Possuem valor econômico mensurável e integram o acervo hereditário. São transmissíveis aos herdeiros legítimos e testamentários. Exemplos: criptomoedas, contas monetizadas em plataformas digitais, direitos autorais sobre conteúdos digitais, saldos em carteiras eletrônicas, investimentos em ativos virtuais.

Bens Digitais Existenciais

Vinculados aos direitos da personalidade, têm valor sentimental ou íntimo. Não são, em regra, transmissíveis aos herdeiros. Exemplos: mensagens privadas, diários digitais, fotografias pessoais, correspondências eletrônicas.

Bens Digitais Híbridos

Apresentam simultaneamente características patrimoniais e existenciais. Requerem análise casuística. Exemplos: perfis em redes sociais com conteúdo pessoal mas também monetizados, blogs com valor afetivo e comercial.

Esta distinção é fundamental para compreender quais ativos devem compor o inventário e quais permanecem protegidos pela privacidade do falecido, respeitando sua vontade e dignidade mesmo após a morte.

Criptomoedas: Desafios Específicos

As criptomoedas representam um dos maiores desafios no contexto sucessório digital. Diferentemente de ativos bancários tradicionais, criptoativos funcionam através de chaves privadas únicas. Sem acesso a estas chaves, os valores tornam-se irrecuperáveis, independentemente de decisões judiciais.

Em Palmas, assim como em todo Brasil, observamos crescente número de investidores em criptomoedas. Muitos mantêm investimentos significativos sem que familiares tenham conhecimento ou acesso às informações necessárias para eventual sucessão.

A Lei 14.478/2022 regulamentou prestadores de serviços de ativos virtuais no Brasil, mas não abordou sucessão patrimonial. Esta omissão gera incertezas sobre forma correta de inventariar, tributar e transferir estes bens.

Existem duas modalidades principais de custódia de criptoativos:

Custódia em Exchanges

Plataformas mantêm custódia dos ativos. Algumas permitem indicação de beneficiários, facilitando sucessão. Herdeiros podem acessar mediante apresentação de documentação específica, incluindo certidão de óbito e comprovação da qualidade de herdeiro.

Autocustódia

Investidor mantém controle exclusivo através de chaves privadas. Sem estas chaves, valores são irrecuperáveis. Representa maior desafio sucessório, exigindo planejamento prévio rigoroso.

O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação incide sobre herança de criptomoedas, mas avaliação do valor pode ser complexa devido à volatilidade característica destes ativos. No Tocantins, a alíquota atual varia conforme legislação estadual.

Privacidade versus Direitos Sucessórios

Um dos pontos mais delicados da herança digital envolve tensão entre proteção da privacidade do falecido e direitos patrimoniais dos herdeiros. O Código Civil brasileiro protege direitos da personalidade mesmo após a morte, legitimando cônjuge, ascendentes e descendentes a defender honra, boa fama e respeitabilidade do de cujus.

Plataformas digitais adotam políticas próprias. O Facebook, por exemplo, permite que usuário escolha previamente destino de sua conta em caso de morte, podendo indicar contato herdeiro para transformar perfil em memorial ou determinar exclusão. Instagram, Google e outras plataformas possuem procedimentos específicos.

Decisões judiciais têm oscilado. Alguns julgamentos priorizam proteção da privacidade, restringindo acesso às contas digitais. Outros decidem favoravelmente aos herdeiros, permitindo acesso mediante ordem judicial, especialmente quando há indícios de ativos patrimoniais.

Em São Paulo, o Tribunal de Justiça julgou improcedente ação de familiar contra exclusão de conta de usuária falecida que não indicou contato herdeiro, validando termos de uso da plataforma que vedavam compartilhamento de senhas e utilização por terceiros.

Esta jurisprudência diversa reforça importância do planejamento sucessório prévio, com disposições testamentárias claras sobre destino dos bens digitais.

Planejamento Sucessório Digital em Palmas

Diante deste cenário complexo e em transformação, o planejamento sucessório digital tornou-se medida essencial para famílias tocantinenses. Algumas estratégias práticas podem ser adotadas:

Inventário de Ativos Digitais

Elaborar documento relacionando todos os bens digitais, incluindo plataformas, contas, carteiras digitais, investimentos virtuais. Atualizar periodicamente este inventário.

Organização de Acessos

Manter registro seguro de informações de acesso, sem comprometer segurança em vida. Considerar utilização de gerenciadores de senhas com funcionalidade de herdeiro de emergência.

Disposições Testamentárias

Incluir no testamento orientações específicas sobre destino de ativos digitais patrimoniais e preferências quanto a conteúdos existenciais. Especificar se perfis devem ser mantidos, transformados em memoriais ou excluídos.

Configuração de Recursos Nativos

Utilizar ferramentas disponibilizadas pelas próprias plataformas para indicação de contatos herdeiros ou definição de preferências post mortem.

Diálogo Familiar

Conversar com familiares sobre existência de ativos digitais, localização de informações relevantes e preferências pessoais, reduzindo surpresas e conflitos futuros.

Consultoria Especializada

Buscar orientação jurídica especializada em Direito Digital e Sucessões para elaboração de estratégia adequada ao perfil patrimonial específico.

Holdings Familiares e Trusts

Para patrimônios digitais significativos, estruturação através de holdings familiares ou trusts pode simplificar sucessão e evitar disputas, especialmente útil para investidores com portfólios relevantes em criptoativos.

Aspectos Tributários

O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação incide sobre herança digital com valor econômico. No Tocantins, a legislação estadual estabelece alíquotas e procedimentos específicos.

A avaliação de ativos digitais pode apresentar dificuldades técnicas. Criptomoedas têm cotação volátil. Perfis monetizados em redes sociais requerem análise de receitas, engajamento e potencial comercial. Domínios de internet têm valor de mercado específico.

A reforma tributária em tramitação pode trazer mudanças significativas na tributação de heranças, incluindo possível progressividade de alíquotas conforme valor transmitido. Famílias palmenses devem acompanhar estas transformações para planejamento adequado.

Desafios Práticos em Palmas

Palmas, capital tocantinense com perfil jovem e conectado, apresenta particularidades no tratamento da herança digital. A população economicamente ativa da capital possui alta taxa de penetração digital, com presença significativa em plataformas sociais e crescente adesão a investimentos em criptoativos.

O Fórum de Palmas tem sido provocado progressivamente sobre questões envolvendo sucessão digital. Observamos aumento de inventários que incluem discussões sobre ativos virtuais, especialmente contas bancárias digitais, investimentos em plataformas online e programas de pontos.

A ausência de legislação específica exige dos magistrados tocantinenses interpretação analógica e aplicação de princípios gerais do Direito Sucessório, gerando inevitável insegurança jurídica enquanto jurisprudência se consolida.

Procedimentos Práticos para Herdeiros

Quando familiar falece deixando ativos digitais, herdeiros em Palmas devem observar procedimento cuidadoso:

Identificação de Ativos

Verificar declarações de Imposto de Renda, extratos bancários, correspondências eletrônicas e dispositivos digitais para identificar possíveis ativos virtuais.

Documentação

Reunir certidão de óbito, comprovação de qualidade de herdeiro, alvará judicial quando necessário.

Contato com Plataformas

Acionar plataformas digitais seguindo procedimentos específicos de cada uma. Exchanges de criptomoedas, redes sociais e outros serviços possuem protocolos próprios.

Petição ao Inventário

Requerer ao juízo do inventário inclusão dos ativos digitais no processo, apresentando provas da existência e documentação que facilite recuperação.

Nomeação de Inventariante Digital

Quando necessário, requerer nomeação de perito especializado para acesso técnico a dispositivos e identificação de ativos, conforme precedente do STJ.

Avaliação Técnica

Para criptomoedas e ativos com valores voláteis, considerar avaliação por perito especializado para fins de inventário e tributação.

O Papel das Plataformas Digitais

Plataformas digitais, como controladoras de dados, têm responsabilidade sobre tratamento de informações de usuários falecidos. Sem legislação específica, aplicam políticas próprias, nem sempre alinhadas com interesses das famílias.

Algumas iniciativas merecem destaque. O Google oferece Gerenciador de Conta Inativa, permitindo usuário definir o que ocorre com dados após período de inatividade. Facebook e Instagram possibilitam indicação de contato herdeiro ou solicitação de exclusão.

Entretanto, falta padronização. Cada plataforma adota procedimentos distintos, exigindo dos herdeiros navegação por protocolos variados, frequentemente burocráticos e demorados.

A regulamentação legislativa deveria estabelecer padrões mínimos, garantindo direitos dos herdeiros sem comprometer privacidade dos falecidos, equilibrando interesses legítimos de todas as partes envolvidas.

Recomendações para Advogados e Profissionais

Profissionais do Direito em Palmas precisam atualizar-se constantemente sobre esta matéria em transformação. Algumas orientações práticas:

Capacitação técnica sobre funcionamento de criptomoedas, blockchain, plataformas digitais e aspectos técnicos relevantes para sucessões.

Inclusão sistemática de cláusulas sobre bens digitais em testamentos e planejamentos sucessórios.

Orientação proativa aos clientes sobre importância de organização prévia de ativos digitais.

Acompanhamento da tramitação legislativa e evolução jurisprudencial sobre o tema.

Rede de contatos com peritos em tecnologia para auxiliar em casos complexos.

Conhecimento sobre políticas específicas das principais plataformas digitais.

Perspectivas Futuras

A herança digital representa fronteira inevitável do Direito Sucessório contemporâneo. À medida que sociedade se digitaliza progressivamente, estes ativos ganham relevância patrimonial e afetiva crescentes.

A aprovação das reformas legislativas em tramitação trará segurança jurídica necessária, estabelecendo regras claras para sucessão de bens virtuais. Até lá, caberá à jurisprudência construir gradualmente soluções, caso a caso.

Para famílias palmenses, recomendação é clara: planejamento prévio. Não postergar organização de ativos digitais. Dialogar com familiares. Buscar orientação jurídica especializada.

O Direito não pode permanecer estático diante da transformação digital. Precisa adaptar-se, garantindo que patrimônio construído ao longo da vida, seja físico ou virtual, seja transmitido adequadamente aos herdeiros, respeitando vontade e dignidade do falecido.

Considerações Finais

A herança digital não é questão marginal ou futurista. É realidade presente que afeta famílias tocantinenses cotidianamente. Em Palmas, capital jovem e conectada, o tema ganha relevância especial.

Como advogada dedicada há mais de duas décadas ao Direito de Família e Sucessões, observo com atenção esta transformação. O desafio não é apenas técnico ou jurídico, mas humano. Trata-se de garantir que memórias, patrimônio e legados digitais sejam preservados e transmitidos conforme vontade de cada pessoa.

Enquanto legislação não avança definitivamente, cabe a nós, operadores do Direito, construir soluções práticas, orientar famílias e antecipar problemas através de planejamento adequado.

Convido as famílias de Palmas a refletirem sobre seus ativos digitais. Que tipo de legado virtual vocês estão construindo? Seus entes queridos terão acesso a ele? Suas vontades serão respeitadas?

A tecnologia transformou nossas vidas. O Direito Sucessório precisa acompanhar esta transformação, garantindo que nosso legado, digital ou não, seja transmitido com segurança, dignidade e respeito aos vínculos familiares que tanto prezamos.

Dra. Candida Dettenborn
Advogada - OAB/TO 11.947
Mestre em Direito e Políticas Públicas - UniCEUB
Especialista em Direito de Família e Sucessões

Alessandro Canedo Advogados Associados
Quadra 603 Sul, Alameda 5, nº 03 - Plano Diretor Sul
Palmas - TO | CEP: 77016-350
Telefone: (63) 3216-2126
Atendimento: Segunda a Sexta, 8h30 às 18h

Este artigo tem finalidade informativa e educacional, respeitando as normas éticas estabelecidas pelo Provimento 205/2021 da OAB.

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